terça-feira, 6 de setembro de 2011

Todas somos um pouco mutiladas

A verdadeira Waris
Waris Dirie é uma mulher corajosa, dona de uma daquelas histórias que parecem ter sido escritas para virar livro ou filme. E a história de Waris virou livro e virou filme, feitos dos quais ela própria fez parte, como autora de sua autobiografia e atuando na produção do filme que conta sua saga. 

Talvez você não esteja associando o nome à pessoa, ou à história, mas certamente já ouviu falar da vida dessa mulher. Waris é aquela modelo somali que foi descoberta ao acaso na Europa e acabou chamando atenção do mundo ao denunciar o sofrimento vivido durante séculos por mulheres africanas sujeitas a um controverso costume local que consiste na mutilação da genitália feminina. 

Por conta de uma crença sexista que subjuga a mulher e lhe confere uma condição inferior, como ocorre em tantas culturas até os dias de hoje, essas meninas ainda muito jovens têm seus clitóris e lábios vaginais retirados como forma de garantir sua "pureza"; o que sobra é costurado, deixando-se um orifício muito pequeno que só é depois ampliado à navalha pelo "marido" na "noite de núpcias'. Revoltante, por mais relativistas que tentemos ser diante de tamanha brutalidade.

Liya Kebede interpreta Waris
Trago a história de Waris porque, apesar de já ter lido e ouvido falar dela há alguns anos, ontem assisti ao filme A Flor do Deserto (2010), baseado na autobiografia da menina mutilada que fugiu pelo deserto sozinha na noite anterior ao seu casamento arranjado com um homem de 60 anos, que "pagou muito bem por ela", foi viver como doméstica na Europa, virou modelo e depois ativista e embaixadora da ONU. 

Fiquei muito tocada, emocionada mesmo. O filme é bem feito, é delicado e cru ao mesmo tempo. A atuação do elenco e o roteiro conferem ao filme ares de documentário, em alguns momentos. É como se fôssemos testemunhas daquela história de coragem, força, pureza, humanidade e um tanto de sorte.

O que me tocou tanto nessa história é que a mutilação daquelas meninas é o sinal mais evidente do que o machismo é capaz de fazer com a mulher, tornando-se naturalizado, por mais sofrimento que cause a suas vítimas. 

A atriz e a Waris "de verdade"
A cena em que Waris descobre que, fora de sua aldeia, as mulheres são inteiras e, nem por isso, menos mulheres, e podem ter prazer com seus corpos, é fascinante. Mostra o choque cultural dos dois lados, nós na pele da amiga ocidental de uma Waris que vai se descobrindo um ser inteiro, que então se dá conta da dor sofrida aos 3 anos de idade, quando a mãe a leva até a mulher que dilacera sua vulva e sua vagina, que em pedaços viram comida de pássaros. 

Uma das cenas da infância de Waris, pouco antes da fuga
De imediato enxerguei aquela cena como uma metáfora de tantas mutilações que as mulheres dos lugares mais diversos do mundo ainda sofrem todos os dias. O que me alenta é saber que existem outras Waris por aí, erguendo-se contra seus algozes, denunciando a mutilação, superando a dor e transformando o mundo em um lugar melhor.