terça-feira, 16 de setembro de 2014

Tradição não é lei


Nos últimos dias, os meios de comunicação e as redes sociais têm discutido a polêmica em torno da cerimônia de casamento civil, realizada no último sábado, em Santana do Livramento. É preciso esclarecer que a decisão inicial de realizar o casamento no CTG Sentinelas do Planalto – alvo de incêndio criminoso – partiu de um pedido feito pela prefeitura, mediante solicitação da diretora do Foro de Livramento, juíza Carine Labres.
Ao contrário do que alguns comentários e artigos têm afirmado erroneamente, a intenção inicial não era promover um casamento coletivo homossexual, mas mais um casamento coletivo. Desta vez, alguns casais homossexuais decidiram participar, aproveitando os avanços na legislação brasileira que, desde maio do ano passado, por resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), igualou as regras para o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
No último sábado, quando se realizava o casamento na Fronteira, o Diário de Santa Maria veiculou, na página 4, um artigo assinado pelo empresário Paulo Norberto Brandt, intitulado Fogo no Galpão. Segundo o autor, a juíza estaria incentivando o conflito e marchando na contramão da história ao ter aceitado casar duas mulheres, entre os 28 casais inscritos, dentro de um centro de tradições gaúchas.
É preciso questionar a sentença não só em seu mérito, mas na sua legitimidade. É legítimo atacar uma representante do judiciário, responsável por zelar pelo cumprimento da lei, por uma decisão amparada na Constituição brasileira, que diz que todos somos iguais? Além de estar cumprindo com sua função, a magistrada deu um passo à frente na história, acolhendo os avanços em curso no país.
Em outro trecho, o empresário Paulo Brandt sugere que tradição tem força de lei e, por isso, um CTG não deveria aceitar em seu ambiente uma cerimônia que viesse a ferir suas tradições. Neste aspecto, a incoerência e a má fé são ainda mais evidentes. Tradição não é lei, é folclore. E as tradições não podem sobrepor- se às leis. Por outro lado, se a lei é assim tão cara aos que atacam os homossexuais, por que tanta resistência em aceitar o que diz nossa lei maior, para a qual a igualdade entre as pessoas deve ser resguardada acima de tudo?
Outro argumento utilizado pelo empresário, e que precisa ser desconstruído, compara homossexuais a traficantes, torcedores de um time ou membros de uma escola de samba. Homossexuais não são criminosos ou um tipo de clube. São seres humanos como quaisquer outros, e sua orientação sexual ou de gênero não deve limitá-los, pois a sexualidade é apenas uma parte que os constitui.
É o mesmo tipo de raciocínio de quem defende que se um lugar não aceita mulher de minissaia ou homem de brinco, também tem o direito de não aceitar gays. Ainda que possamos questionar as exigências do MTG quanto às vestes, estilo musical e outras questões ligadas ao folclore gaúcho, a instituição tem o direito de resguardá-las, desde que sem uso da violência. A instituição tem também o direito de não promover em seus espaços, por iniciativa própria, atividades de apoio à comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, e não mais GLS, como escreveu Brandt). O que qualquer instituição não pode é ir contra a lei e discriminar quem quer que seja por sua condição. Aliás, se assim fosse, ainda hoje os clubes e CTG’s barrariam negros de entrar em seus espaços.
Disse o empresário que, em seus 53 anos de vida, jamais foi convidado para um casamento em um CTG. Talvez precise rever seu círculo de amizades dentro do tradicionalismo. Em meus 39, participei de inúmeros casamentos em CTG’s. Frequentei esses locais durante boa parte de minha infância e adolescência e comemorei meus 15 anos em um.  Em 1984, fui 1ª prenda do CTG Caiboaté, de São Gabriel, 1ª prenda do mesmo município, e 2ª prenda da 18ª região tradicionalista do MTG, dancei em invernada artística por alguns anos e, embora hoje mais afastada, continuo apreciando muitas coisas da cultura gauchesca. Se alguma coisa pode vir a destruir a tradição gaúcha, como teme este senhor, é o preconceito e o ódio contra as diferenças. Eu, por exemplo, questiono muito da cultura machista presente no tradicionalismo, mas fico feliz ao saber que vários jovens hoje estão mudando essas coisas de dentro, participando do movimento. Conheço vários homossexuais que são tradicionalistas. Por que eles não podem se casar em um CTG se assim o desejarem? Ou eles só servem para fazer número?
Para encerrar, o ilustre empresário afirma que a juíza deve um pedido de desculpas ao povo gaúcho e um reconhecimento aos “homens que foram defender aquilo que temos de mais valioso”. Neste aspecto, é preciso muito cuidado. Estaria o senhor Paulo endossando o ato criminoso daqueles que atearam fogo no CTG de Livramento? Se a resposta for afirmativa, então quem deve se retratar é ele. Não podemos admitir que um empresário, uma dita liderança local, utilize um espaço democrático e o direito à livre expressão para defender o indefensável. Não se pode confundir liberdade de expressão com incitação ao ódio e à barbárie. Todos podemos gostar ou não gostar daquilo que nos soa diferente, mas invocar a tradição para legitimar atos criminosos é inaceitável. Se está, assim, tão preocupado com a cultura gaúcha, este senhor deveria se unir àqueles que estão tentando mostrar ao resto do país e ao mundo que por aqui existe gente que respeita as diferenças e luta por um mundo mais justo e igualitário.




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