Nos últimos dias, os meios de
comunicação e as redes sociais têm discutido a polêmica em torno da cerimônia de
casamento civil, realizada no último sábado, em Santana do Livramento. É
preciso esclarecer que a decisão inicial de realizar o casamento no CTG
Sentinelas do Planalto – alvo de incêndio criminoso – partiu de um pedido feito
pela prefeitura, mediante solicitação da diretora do Foro de Livramento, juíza
Carine Labres.
Ao contrário do que alguns comentários e
artigos têm afirmado erroneamente, a intenção inicial não era promover um
casamento coletivo homossexual, mas mais um casamento coletivo. Desta vez,
alguns casais homossexuais decidiram participar, aproveitando os avanços na
legislação brasileira que, desde maio do ano passado, por resolução do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), igualou as regras para o casamento entre pessoas do
mesmo sexo.
No último sábado, quando se realizava o
casamento na Fronteira, o Diário de Santa Maria veiculou, na página 4, um
artigo assinado pelo empresário Paulo Norberto Brandt, intitulado Fogo no
Galpão. Segundo o autor, a juíza estaria incentivando o conflito e marchando na
contramão da história ao ter aceitado casar duas mulheres, entre os 28 casais
inscritos, dentro de um centro de tradições gaúchas.
É preciso questionar a sentença não só
em seu mérito, mas na sua legitimidade. É legítimo atacar uma representante do
judiciário, responsável por zelar pelo cumprimento da lei, por uma decisão
amparada na Constituição brasileira, que diz que todos somos iguais? Além de
estar cumprindo com sua função, a magistrada deu um passo à frente na história,
acolhendo os avanços em curso no país.
Em outro trecho, o empresário Paulo
Brandt sugere que tradição tem força de lei e, por isso, um CTG não deveria
aceitar em seu ambiente uma cerimônia que viesse a ferir suas tradições. Neste
aspecto, a incoerência e a má fé são ainda mais evidentes. Tradição não é lei,
é folclore. E as tradições não podem sobrepor- se às leis. Por outro lado, se a
lei é assim tão cara aos que atacam os homossexuais, por que tanta resistência
em aceitar o que diz nossa lei maior, para a qual a igualdade entre as pessoas
deve ser resguardada acima de tudo?
Outro argumento utilizado pelo
empresário, e que precisa ser desconstruído, compara homossexuais a
traficantes, torcedores de um time ou membros de uma escola de samba.
Homossexuais não são criminosos ou um tipo de clube. São seres humanos como
quaisquer outros, e sua orientação sexual ou de gênero não deve limitá-los,
pois a sexualidade é apenas uma parte que os constitui.
É o mesmo tipo de raciocínio de quem
defende que se um lugar não aceita mulher de minissaia ou homem de brinco,
também tem o direito de não aceitar gays. Ainda que possamos questionar as
exigências do MTG quanto às vestes, estilo musical e outras questões ligadas ao
folclore gaúcho, a instituição tem o direito de resguardá-las, desde que sem
uso da violência. A instituição tem também o direito de não promover em seus
espaços, por iniciativa própria, atividades de apoio à comunidade LGBT
(lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, e não mais GLS, como escreveu
Brandt). O que qualquer instituição não pode é ir contra a lei e discriminar
quem quer que seja por sua condição. Aliás, se assim fosse, ainda hoje os clubes
e CTG’s barrariam negros de entrar em seus espaços.
Disse o empresário que, em seus 53 anos
de vida, jamais foi convidado para um casamento em um CTG. Talvez precise rever
seu círculo de amizades dentro do tradicionalismo. Em meus 39, participei de inúmeros
casamentos em CTG’s. Frequentei esses locais durante boa parte de minha
infância e adolescência e comemorei meus 15 anos em um. Em 1984, fui 1ª prenda do CTG Caiboaté, de
São Gabriel, 1ª prenda do mesmo município, e 2ª prenda da 18ª região tradicionalista
do MTG, dancei em invernada artística por alguns anos e, embora hoje mais
afastada, continuo apreciando muitas coisas da cultura gauchesca. Se alguma
coisa pode vir a destruir a tradição gaúcha, como teme este senhor, é o
preconceito e o ódio contra as diferenças. Eu, por exemplo, questiono muito da
cultura machista presente no tradicionalismo, mas fico feliz ao saber que
vários jovens hoje estão mudando essas coisas de dentro, participando do
movimento. Conheço vários homossexuais que são tradicionalistas. Por que eles
não podem se casar em um CTG se assim o desejarem? Ou eles só servem para fazer
número?
Para encerrar, o ilustre empresário
afirma que a juíza deve um pedido de desculpas ao povo gaúcho e um
reconhecimento aos “homens que foram defender aquilo que temos de mais
valioso”. Neste aspecto, é preciso muito cuidado. Estaria o senhor Paulo
endossando o ato criminoso daqueles que atearam fogo no CTG de Livramento? Se a
resposta for afirmativa, então quem deve se retratar é ele. Não podemos admitir
que um empresário, uma dita liderança local, utilize um espaço democrático e o
direito à livre expressão para defender o indefensável. Não se pode confundir
liberdade de expressão com incitação ao ódio e à barbárie. Todos podemos gostar
ou não gostar daquilo que nos soa diferente, mas invocar a tradição para
legitimar atos criminosos é inaceitável. Se está, assim, tão preocupado com a
cultura gaúcha, este senhor deveria se unir àqueles que estão tentando mostrar
ao resto do país e ao mundo que por aqui existe gente que respeita as
diferenças e luta por um mundo mais justo e igualitário.
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